
Redatora de saúde e bem-estar, autora de reportagens sobre alimentação, família e estilo de vida.

Beber água não é apenas saudável — é essencial. O corpo humano precisa manter níveis adequados de hidratação para funcionar corretamente, e uma pessoa comum consegue sobreviver, no máximo, de três a cinco dias sem repor líquidos. Mas, afinal, quanta água é realmente necessária?
Sentimos informar, mas ninguém pode afirmar um número exato. A famosa recomendação de que é preciso beber dois litros de água por dia não passa de um mito sem respaldo científico.
Ainda assim, o mito persiste. É repetido com facilidade em mensagens vagas sobre saúde, muitas vezes divulgadas por pessoas ou instituições alheias às evidências científicas — que apenas reproduzem, como um eco, o mesmo mantra que ouviram ou leram em outro lugar.
Se a água é saudável e indispensável, qual seria o problema de recomendar, ao menos, dois litros por dia? Para começar, essa ideia costuma ser usada para vender produtos ou desviar a atenção de temas realmente relevantes.
Empresas e organizações que aparentam se preocupar com nossa saúde, na verdade, demonstram estar ultrapassadas — sem interesse algum em se atualizar ou divulgar informações com base em conhecimento de fato.
Em outras palavras, se você ler ou ouvir a frase “é preciso beber dois litros de água por dia”, desconfie. Pense com calma: se cada pessoa tem necessidades nutricionais diferentes, por que todos precisariam da mesma quantidade exata de água?
De onde vem esse mito?
Não há uma origem única e clara para esse mito, como acontece com outras crenças alimentares sem fundamento. A literatura científica que tenta desconstruir essa ideia — analisando por que ela se espalhou tanto e ainda persiste — aponta para uma má interpretação de mensagens divulgadas por diversos autores na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos.
Livros como “Nutrition for Good Health: Eating Less and Living Longer!”, de Fredrick J. Stare e Margaret McWilliam, fizeram sucesso nos anos 1970 ao apresentar conselhos de saúde sem fornecer fontes confiáveis que sustentassem suas recomendações. Com isso, mensagens mal embasadas foram sendo repetidas e acabaram ganhando status de verdade absoluta.
Parece que o conselho de beber “de seis a oito copos de água a cada 24 horas” teve grande impacto na sociedade norte-americana. Muitos outros autores, de diferentes áreas, passaram a repetir esse mantra — talvez pela facilidade de transmiti-lo a pacientes ou leitores, e provavelmente também a telespectadores e ouvintes de rádio. Eram tempos em que a divulgação sobre saúde, alimentação equilibrada e exercícios físicos ganhava força — e também se consolidava como um negócio lucrativo.
E, como acontece com todo slogan simples e aparentemente lógico, a ideia foi sendo repetida e espalhada até se firmar como uma “regra básica”. A nutrição é uma ciência complexa, mas é fácil lembrar que devo beber entre seis e oito copos de água por dia. E mais fácil ainda é sentir culpa por não conseguir cumprir isso.
Em muitos países, especialmente na Europa, esse mito também foi assimilado — adaptado ao sistema métrico local como a recomendação de beber dois litros de água por dia. E não importa quantas vezes ele seja desmentido: a ideia persiste, ano após ano, especialmente durante o verão.
Desmistificando o mito: não há base científica
Como já explicou o nutricionista e dietista Juan Revenga há algum tempo, diversos pesquisadores e especialistas vêm tentando, com dados e evidências, desmentir esse mito equivocado.
Em 2002, foi publicado o estudo mais relevante sobre o tema: “Drink at least eight glasses of water a day. Really? Is there scientific evidence for 8 × 8?”, de Heinz Valtin. Nos anos seguintes, muitos outros estudos seguiram na mesma linha — afinal, o mito continua sendo repetido, mesmo sem existir uma única evidência científica que o sustente.
A revista British Medical Journal publicou, em 2011, o artigo “Waterlogged?”, que não apenas voltou a desmentir a recomendação dos “oito copos por dia”, como também analisou como esse mito segue se espalhando na sociedade, quem o promove e quais seriam os interesses por trás disso.
A conclusão, que não surpreende, aponta para interesses comerciais: grandes multinacionais estariam financiando campanhas — nem sempre transparentes — que incentivam o consumo de água.
Hoje, mesmo com o acesso à informação mais democrático do que nunca, a desinformação ainda circula livremente — uma contradição dos nossos tempos. O mito dos dois litros de água por dia ressurge com força a cada ano, mesmo sem o respaldo de instituições como a Agência Espanhola de Segurança Alimentar e Nutrição (AESAN), que sequer apresentam uma recomendação numérica exata.
O médico de família e divulgador Fernando Fabiani também aponta a indústria alimentícia e farmacêutica como uma das responsáveis pela disseminação da ideia. Em seu livro “La salud enferma”, ele destaca como certos discursos alarmistas — mesmo direcionados a pessoas saudáveis — acabam nos fazendo sentir doentes, justamente para estimular o consumo de produtos desnecessários.
Um dos estudos mais recentes sobre o tema, publicado na revista Science em 2022, reforça que a recomendação dos dois litros diários não tem qualquer base científica. Os pesquisadores constataram que os famosos oito copos por dia são desnecessários para a maioria das pessoas — e que, em alguns casos, essa quantidade pode ser até excessiva e contraproducente.
Um dos autores do estudo, o professor John Speakman, da Universidade de Aberdeen, sugere que a origem do mito pode estar ligada a um erro de cálculo: é provável que as primeiras recomendações do século passado tenham ignorado a água que consumimos por meio dos alimentos. Além disso, essas diretrizes também desconsideram as necessidades individuais, que variam muito de pessoa para pessoa.
Afinal, quanta água devemos beber por dia?
Uma dúvida volta à tona: se a hidratação é tão essencial, como saber a quantidade certa de água para consumir diariamente? Como já mencionado no início, a resposta não é simples — e tampouco pode ser reduzida a um número fixo.
O especialista em ciência dos alimentos Miguel Ángel Lurueña resume bem a questão: “Nossas necessidades variam muito de acordo com diversos fatores, como a temperatura ambiente, o tipo de trabalho que realizamos, os alimentos que ingerimos”. Ou seja, em condições normais, devemos beber água guiados principalmente pela sede.
A natureza é sábia — e nos deu mecanismos eficientes para avisar quando o organismo precisa de algo específico. Sentir sono, fome ou sede são respostas naturais a um desequilíbrio interno. No caso da sede, a função é clara: estimular a ingestão de líquidos para evitar a desidratação.
Esse impulso é regulado por mecanismos fisiológicos bastante complexos, que envolvem desde o volume de sangue até processos celulares. Mas, no dia a dia, o que realmente importa é a mensagem simples: se estou com sede, preciso me hidratar.
Outro ponto essencial: não nos hidratamos apenas com água
A alimentação tem um papel fundamental na hidratação do corpo. Aliás, é comum que, nos dias mais quentes, busquemos naturalmente alimentos ricos em água — mais uma vez, mérito da natureza, que oferece frutas e hortaliças frescas e muito hidratantes justamente no verão.
Estima-se que, em média, entre 20% e 30% da água que consumimos diariamente vem dos alimentos. Frutas e verduras (cruas ou cozidas), sopas quentes e frias, caldos, molhos, guisados, café, chá, bebidas vegetais, leite e derivados, sucos, vitaminas, raspadinhas... até carnes, peixes, leguminosas hidratadas e massas de padaria contribuem com pequenas quantidades de água.
Em 2010, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) estabeleceu recomendações gerais de ingestão diária de água — considerando também a água presente nos alimentos — para pessoas em condições de temperatura e esforço físico moderados. As diretrizes sugerem cerca de 2 litros para mulheres (2,3 litros durante a gravidez e 3 litros na lactação) e 2,5 litros para homens.
Uma pessoa saudável, mesmo desde a infância, sabe quando precisa beber água ao sentir sede. “É preciso responder à sensação de sede. Beber água nas refeições e entre elas, sempre que a sede aparecer, e ter uma alimentação rica em frutas e hortaliças”, estaca Manuel Moñino, da Academia de Nutrição e Dietética.
Quando a sede não é suficiente
Até aqui falamos de adultos saudáveis em condições normais, mas há exceções em que não podemos confiar apenas na sensação de sede para manter a hidratação. Um exemplo claro é o esporte.
Durante um treino — que não precisa ser uma competição de alto nível — é possível perder entre um e dois litros de água pelo suor. Por isso, é importante se hidratar antes, durante e após o exercício, mesmo que não se sinta sede naquele momento. A quantidade varia conforme o estado físico, a duração e intensidade da atividade, além da temperatura ambiente.
Como referência, Santiago Campillo indica, que em competições intensas a recomendação é de 5 a 7 ml por quilo de peso corporal, ou seja, cerca de 400 a 600 mililitros nas três ou quatro horas que antecedem a prova.
Além da atividade física — seja esportiva ou não (não é a mesma coisa trabalhar sentado em um escritório ou no campo, por exemplo) —, é preciso considerar o metabolismo, o uso de medicamentos e a idade.
Algumas doenças metabólicas, como o diabetes, afetam a sensação de sede, assim como certos remédios, que podem acelerar a desidratação. Além disso, com o avanço da idade, a capacidade de perceber a sede diminui, tornando os idosos um grupo de risco para desidratação e golpes de calor — assim como as crianças pequenas, que ainda não controlam bem essa sensação.
O que é melhor: exagerar ou ficar aquém?
O excesso é prejudicial, inclusive no consumo de água. Embora raro, é possível beber água em excesso — a ponto de causar danos à saúde.
A hiperidratação costuma ser um efeito secundário de algum outro transtorno ou doença, pois normalmente o corpo consegue filtrar e eliminar o excesso sem problemas. Pode ocorrer em atletas excessivamente preocupados em evitar a desidratação ou em algumas condições psiquiátricas. Em situações extremas, o excesso de água pode diluir o sódio no sangue, causando hiponatremia, que pode ter consequências graves.
Porém, o maior risco da recomendação fixa de beber dois litros diários está nos efeitos psicológicos: cria-se uma obsessão sem sentido, fazendo acreditar que a água tem poderes quase mágicos. Beber além da sede não elimina mais toxinas nem ajuda a emagrecer; apenas proporciona uma sensação passageira de saciedade.
Ficar aquém do necessário é muito mais perigoso. Mas, em condições normais e para pessoas saudáveis, é difícil que a falta de hidratação cause problemas sérios ou sintomas evidentes de desidratação. Atualmente, a maioria das pessoas leva uma vida mais sedentária e repõe líquidos constantemente ao longo do dia, tanto com alimentos quanto com outras bebidas.
E, embora existam outros líquidos mais eficazes para hidratar o corpo em situações de calor extremo — como o leite desnatado —, a água da torneira continua sendo a bebida mais saudável para o consumo diário. Além de ser a mais barata e sustentável.
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